Com uma memória privilegiada, Antonio Maciente conta o período em que trabalhou na Força Pública nesta entrevista ao jornalista João Umberto Nassif.
Foto: Divulgação - Antonio Maciente, atualmente, aos 91, em que conserva disposição para visitar os filhos, sempre pegando ônibus. E, no detalhe, quando integrava a Força Pública, que se tornaria a Polícia Militar
Em 1970, no Estado de São Paulo, houve a fusão da Força Pública com a Guarda Civil e a adoção do nome Polícia Militar. Todas as datas comemorativas da Polícia Militar, e até mesmo seu hino, mantêm ainda hoje a menção e a memória da antiga Força Pública, pois no processo de junção com a Guarda Civil prevaleceu na corporação a cultura da Força Pública. Antonio Maciente nasceu em 21 de maio de 1920, no então Distrito de Charqueada, filho de Vitório Maciente e Ana da Encarnacion Sota Maciente. Aos 91 anos conserva as lembranças dos nove anos em que trabalhou como soldado da Força Pública. Com uma memória prodigiosa, lembra-se dos nomes completos de personagens de outrora. Ainda menino, aos 12, já iniciou a lide como tropeiro, conduzindo animais de um lado para outro. Ingressou na Força Pública servindo em diversas localidades do Estado, permanecendo por alguns anos em Piracicaba nos tempos em que a Força Pública mantinha na cidade pouco mais do que uma dezena de homens. Apenas recorrendo à memória, ele narra fatos curiosos, cita locais, personalidades, alguns até pitorescos, como o conhecido João da Curva, pessoa que narrava seus feitos irreais com muita naturalidade. Após desligar-se da vida de soldado, ingressou como um dos primeiros funcionários da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), onde permaneceu até aposentar-se. Antonio Maciente e sua esposa tiveram seus dias de Romeu e Julieta. Apaixonados, lutaram muito para permanecer juntos. Na época, tiveram que transpor obstáculos impostos aos enamorados. Embora seja muito ligado à família, Antonio, atualmente viúvo, conserva sua vida própria, independente, mora sozinho, dando-se ao prazer de ir de ônibus da sua casa no Centro até o supermercado na Praça Takaki, não se esquecendo de passar em uma loja de variedades onde adquire as guloseimas das netas e bisnetas. Uma rotina que completa com a visita às casas dos filhos aos fins de semana.
Quando o senhor nasceu, a sua família morava em que local?
Morava em uma fazenda de propriedade de Acácio Ferreira, situada no então Distrito de Charqueada, era lavoura de café. São meus irmãos: Osório Benedito, Rosa, Belmira, Sebastião, Aparecida, Maria, Clementina, Benedita, João Batista, todos nós nascemos nas proximidades de Charqueada.
O senhor trabalhou na lavoura?
Até os 12 anos, trabalhei na cultura de café, milho e algodão. O meu pai era colono de café.
A partir dos 12 anos que trabalho o senhor passou a fazer?
Fui viajar com tropa, os tropeiros eram Alfredo Rodrigues de Moraes, Domingos Chiaramelo, João Sebe. Mais tarde, em Piracicaba, trabalhei com o famoso tropeiro José Pretel, que construiu a casa da Rua São José esquina com a Rua do Rosário, onde veio a ser gabinete do Prefeito Municipal (Adilson Benedito Maluf) e onde funcionou o Samdu (Serviço de Atendimento Médico de Urgência), e até pouco tempo foi sede da Uniodonto de Piracicaba. Trabalhei como tropeiro até os 22 anos. Eu era bom cavaleiro, um tropeiro se interessou pelo meu desempenho e me colocou como “madrinheiro de tropa”, o cavaleiro cujo cavalo tem um sino dependurado no pescoço e é seguido pelos demais animais da tropa (cavalos, éguas, mulas, burros).
Como era composta a tropa?
Geralmente, viajávamos em três tropeiros levando um número variável de animais, 20, 30, 50. Andávamos o dia todo, parávamos em lugares pré-determinados, os proprietários desses locais, chamados de pousos, alugavam os pastos para deixarmos os animais. Dormíamos onde dava até mesmo ao relento, tínhamos o pelego que fazíamos de colchão e o poncho era o nosso cobertor. Viajávamos pela região de Piracicaba: Rio Claro, Botucatu e outras localidades próximas.
O senhor foi jóquei?
Em São Pedro, havia uma raia, onde havia as corridas de cavalo, lá eu disputei muitas corridas, tenho 1,60m de altura e sempre pesei 60 quilos.
Quando foi seu ingresso na Força Pública?
Foi nessa época. Achei que deveria trabalhar na polícia, havia um decreto recrutando candidatos a soldados da Força Publica. Uma comissão veio até Piracicaba onde cadastrou os interessados. Nas instalações existentes até hoje, na rua São José esquina com Luiz de Queiroz, foi feito o cadastro de mais de uma centena de candidatos. Dormíamos lá, e fazíamos os exames na Rua do Porto, um médico acompanhava as provas de resistência, corridas de 100 metros com pés descalços, 1000 metros calçado com botina ou sapatão, o chão era de terra. De 300 candidatos apenas 106 seguiram para São Paulo, para realizarem exames mais detalhados. Fomos de trem com passagem fornecida pelo Governo do Estado. Dessa centena de candidatos foi escolhida uma dezena, os demais foram dispensados.
Chegando a São Paulo, para onde os candidatos se dirigiram?
Fomos para a Avenida Tiradentes esquina com Jorge Miranda, junto ao Primeiro BC (Batalhão de Cavalaria) e o Primeiro BG (Batalhão de Guarda), na esquina havia a escola de polícia. Após seis meses de estudos, em 1942, “passei a pronto”, pedi para trabalhar em Campinas, batalhão que destacava em Piracicaba.
Como soldado da Força Publica, qual foi seu primeiro trabalho em Piracicaba?
Nos tempos da Segunda Guerra Mundial, as usinas de força eram guarnecidas. Na região, tínhamos diversas usinas de energia, em Piracicaba, Carioba, Joaquim Egidio, Salto Grande. Em Piracicaba, ainda existe os prédios onde funcionava a usina de força, próxima à Fábrica de Tecidos Boyes. Quando vim trabalhar pela primeira vez em Piracicaba, vim para a guarda da usina, eu morava no quartel situado na esquina da rua São José com Luiz de Queiroz, o prédio permanece ainda lá, em cima funcionava a Força Pública, embaixo no porão era o quartel da Guarda Noturna. Por muito tempo, fiz as refeições na pensão do João Buriol, ele era negro, sua esposa chamava-se Escolástica, situava-se na rua Boa Morte entre a XV de Novembro e Rangel Pestana, aonde mais tarde veio a funcionar o Hotel Brasil. Na esquina da rua Boa Morte com D. Pedro II havia um posto de gasolina, era o Posto São João, de propriedade do Nathan, e arrendado ao Benedito Rocha, o prédio existe ainda. Por um período de tempo tomei as refeições no Bar São Benedito, de propriedade de João Zaia, ao lado da catedral e junto onde hoje existe um supermercado, entre rua XV de Novembro e Moraes Barros. Naquele local existiam os chamados “expressinhos”, de propriedade da família Gianetti, era automóveis Ford 1941 que faziam viagens de Piracicaba a São Paulo, era o único meio de transporte rodoviário para São Paulo, não existia linha de ônibus.
Como era o leito das ruas de Piracicaba nessa época?
Era chão de terra com pedregulho, um determinado vereador não dizia “pedregulhar a cidade” e sim “apedrejar a cidade”.
Quando o senhor se casou?
Casei em 1o de dezembro de 1946 com Zoraide Conceição. Como na época a catedral estava em reforma o meu casamento foi celebrado na Igreja São Benedito, tive como padrinhos Antonio Oswaldo e Serafim Tricânico, proprietário de dois ônibus que faziam a linha de Piracicaba a Torrinha. Fomos residir na Rua D. Pedro II, próximo à Rua Boa Morte, em frente ao Externato São José. É anterior a minha época, mas diziam que ali havia carrinhos de tração animal que transportavam quem os contratasse, a semelhança dos carros que servem como taxi. Contava-se na época que Nhô Felix tinha ali um carrinho de aluguel, era um carrinho muito bonito, puxado por um cavalo também muito bonito, com isso todo mundo dava preferência ao carrinho de Nhô Felix. Por esse motivo, o cavalo trabalhava demais. Isso gerou uma referência, quando a pessoa sentia que estava trabalhando demais, ela dizia: “Você está pensando que eu sou cavalo de Nhô Felix?”
Nessa época, o senhor era soldado, como era a farda?
Usava-se sapatão onde era encaixada a perneira, usava-se culote, que era uma calça sem barra, era amarrada embaixo, em seguida tinha a túnica e o quepe. A túnica tinha sete botões, o quepe tinha a figura de dois fuzis cruzados. Na cintura tinha um revolver Colt Cavalinho calibre 38, tambor de seis tiros, oxidado. Levava também um fuzil que tinha um pente com cinco balas. Durante todo o tempo em que estive no Oitavo BC em Campinas eu tive um fuzil, para onde eu fosse como destacado ou em diligencia eu levava esse mesmo fuzil. Aos 23 anos fui destacado como soldado em Santa Maria da Serra, na época uma pequena vila, havia um cidadão de nome Antonio Ribas, trabalhador de roça, que respondia pela segurança da localidade, fazia às vezes de delegado, eu era a única força policial local.
Em que local o senhor se hospedava?
Eu morava na cadeia. Na pensão de Olimpio de Campos eu tomava minhas refeições. Eu preferia dormir na cadeia onde tinha mais conforto e segurança. Não havia ninguém preso. Naquele tempo ninguém tinha chuveiro quente, tomava-se banho em uma bacia. Quando estive no quartel em São Paulo existia o banho de chuveiro, porém com água fria. Em Piracicaba, não existia chuveiro elétrico, a energia elétrica distribuída não suportava a instalação de chuveiro.
O senhor trabalhou em Limeira?
No tempo da Segunda Guerra trabalhei na Machina S. Paulo em Limeira, dizia-se que era indústria de material bélico, de propriedade do Dr. Trajano de Barros Camargo. A empresa era guardada por 10 soldados, as refeições eram feitas em uma pensão, foi adaptado um quarto para os soldados dentro da própria indústria.
O senhor estava aquartelado em Campinas?
Estava, até que veio uma comissão para selecionar soldados para completar o batalhão de São Paulo. Pela ficha sanitária dos 1800 soldados existentes em Campinas, Geraldo Arruda que era da cidade de Rio das Pedras e eu fomos os selecionados para integrar o Primeiro BC, em São Paulo.
Qual foi o local em que o senhor passou a trabalhar?
Fui prestar serviços no Carandiru, no bairro Santana, ficava na muralha vigiando os presos, com o fuzil embalado. Permaneci trabalhando lá por uns três anos. Dormia no quartel na Avenida Tiradentes. Todos os dias um grupo de 30 soldados saia do quartel e ia até o Carandiru, a pé.
O senhor conheceu Meneghetti?
Cheguei a ver o famoso ladrão Gino Amleto Meneghetti, era um homem de estatura pequena, mas muito esperto.
O senhor trabalhou em Pirassununga?
Em Pirassununga havia uma escola voltada ao ensino agrícola, a grama dos jardins dessa escola foi plantada por presos de guerra. Éramos em 14 soldados para cuidar de pouco mais de duas dezenas de presos italianos, eles foram aprisionados quando estavam no navio SS Conte Grande. Foi feito um cercado eles não podiam fugir de lá. Tinha um alojamento de presos e outro menor para os soldados. Eram presos que não ofereciam nenhum perigo, tinhamos uma relação muito cordial, havia um soldado que era o nosso cozinheiro e um preso italiano que era cozinheiro dos presos, muitas vezes fui comer no alojamento dos presos, a comida era bem melhor. Isso foi no tempo em que Fernando de Souza Costa era o interventor no Estado de São Paulo.
Em que ano o senhor voltou á Piracicaba?
Fui destacado para Piracicaba em 1944, fiquei alojado no quartel situado na esquina da Rua Luiz de Queiroz com São José. Nessa época a cidade não tinha calçamento, só havia pedregulho na cidade. Como soldado trabalhava a pé. Por muito tempo trabalhei na Caça e Pesca, os fiscais eram Geraldo Pinto de Almeida e Nonô, ambos civis.
O senhor conheceu João da Curva?
Conheci-o e o irmão dele o Titi. João da Curva morava na Rua Alferes José Caetano, entre as Ruas D. Pedro I e Rua Ipiranga, era proprietário de um rancho de pescaria. Estive no rancho dele varias vezes, era um bom cozinheiro. Entre as muitas histórias que ele contou, uma delas foi a seguinte: “Ele foi fazer uma necessidade orgânica, tirou o relógio do pulso e colocou em uma pequena árvore, após satisfazer a necessidade, saiu e esqueceu o relógio. Passados 10 anos ele lembrou-se, voltou ao local, a árvore estava crescida, grande, foi quando ele viu lá no alto o relógio, escutou tic, tic, tic, o relógio trabalhando!”. Ele passou a ser chamado de João da Curva pelo causo que ele contou para muita gente, inclusive para mim, dizia que queriam matar um veado, na hora em iam atirar o veado fazia uma curva e erravam o tiro. O que ele fez? Entortou o cano da espingarda, quando o veado fez a curva ele atirou, acertando o veado. Isso ele contou para mim!
O que o senhor disse a ele?
Apenas dei risada! Não queria perder o amigo. Ele contava tudo isso muito sério.
Quanto tempo o senhor permaneceu na Força Pública?
Trabalhei por nove anos, dei policiamento quando Getúlio Vargas, Brigadeiro Eduardo Gomes, Luis Carlos Prestes estiveram em Piracicaba. Quando o Partido Comunista foi fechado em Piracicaba eu tomei posse do prédio em nome da lei, localizava-se em uma rua existente onde mais tarde foi construído o Comurba e hoje abriga o Poupatempo. Conheci Adhemar de Barros, o primeiro delegado regional de Piracicaba Dr. Calmon de Brito foi até um rancho de pescaria, onde Adhemar estava pescando, sem camisa, chinelo, shorts, foi Dr. Calmon quem cuidou para preservar a privacidade de Adhemar, achei um gesto muito bonito.
O senhor fez muitas prisões em Piracicaba, pode citar algum nome em especial?
Prendi Pedro Lopes, um conhecido ladrão de cavalo. Recebemos a denuncia de que ele estava em Pirassununga, tomei um carro de aluguel (taxi) e fui até aquela cidade onde dei voz de prisão a ele. Na noite de 29 a 30 de agosto de 1945 estavam presos Pedro Lopes, Mathias Gonçalves e Sérgio Bandido, três malfeitores que batiam, roubavam e matavam. Era responsável pela guarda, também chamado de “cabo de guarda”. Desconfiei do comportamento dos presos, alertei os dois soldados que estavam subordinados as minhas ordens. No dia seguinte Pedro Lopes teve a fuga facilitada por outro cabo de guarda, que foi expulso da polícia.
Em que ano o senhor deixou a polícia?
Foi em 1949. Fiz uma abordagem a um marginal armado de revólver que apontava a mesma à cabeça de um refém, com um golpe só desarmei-o. Ele foi ferido, correu um processo, onde por interferências políticas fui afastado da Força Publica. Mais tarde, tive reconhecido meu perfeito desempenho na ação, e poderia ser reintegrado, mas já estava trabalhando em melhores condições na Faculdade de Odontologia de Piracicaba, onde permaneci por 26 anos, como responsável pela manutenção e almoxarifado. Na FOP, convivi com grandes nomes como Prof. Liberalli, Prof. Antonio Carlos Nedeer, Profa. Clotildes Fernandes, Prof. Miguel Morano Júnior, Prof. Eduardo Daruge, Prof Waldemar Romano e tantos outros.
Extraída de: http://www.tribunatp.com.br/modules/news/article.php?storyid=9473
Foto: Divulgação - Antonio Maciente, atualmente, aos 91, em que conserva disposição para visitar os filhos, sempre pegando ônibus. E, no detalhe, quando integrava a Força Pública, que se tornaria a Polícia Militar
Em 1970, no Estado de São Paulo, houve a fusão da Força Pública com a Guarda Civil e a adoção do nome Polícia Militar. Todas as datas comemorativas da Polícia Militar, e até mesmo seu hino, mantêm ainda hoje a menção e a memória da antiga Força Pública, pois no processo de junção com a Guarda Civil prevaleceu na corporação a cultura da Força Pública. Antonio Maciente nasceu em 21 de maio de 1920, no então Distrito de Charqueada, filho de Vitório Maciente e Ana da Encarnacion Sota Maciente. Aos 91 anos conserva as lembranças dos nove anos em que trabalhou como soldado da Força Pública. Com uma memória prodigiosa, lembra-se dos nomes completos de personagens de outrora. Ainda menino, aos 12, já iniciou a lide como tropeiro, conduzindo animais de um lado para outro. Ingressou na Força Pública servindo em diversas localidades do Estado, permanecendo por alguns anos em Piracicaba nos tempos em que a Força Pública mantinha na cidade pouco mais do que uma dezena de homens. Apenas recorrendo à memória, ele narra fatos curiosos, cita locais, personalidades, alguns até pitorescos, como o conhecido João da Curva, pessoa que narrava seus feitos irreais com muita naturalidade. Após desligar-se da vida de soldado, ingressou como um dos primeiros funcionários da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), onde permaneceu até aposentar-se. Antonio Maciente e sua esposa tiveram seus dias de Romeu e Julieta. Apaixonados, lutaram muito para permanecer juntos. Na época, tiveram que transpor obstáculos impostos aos enamorados. Embora seja muito ligado à família, Antonio, atualmente viúvo, conserva sua vida própria, independente, mora sozinho, dando-se ao prazer de ir de ônibus da sua casa no Centro até o supermercado na Praça Takaki, não se esquecendo de passar em uma loja de variedades onde adquire as guloseimas das netas e bisnetas. Uma rotina que completa com a visita às casas dos filhos aos fins de semana.
Quando o senhor nasceu, a sua família morava em que local?
Morava em uma fazenda de propriedade de Acácio Ferreira, situada no então Distrito de Charqueada, era lavoura de café. São meus irmãos: Osório Benedito, Rosa, Belmira, Sebastião, Aparecida, Maria, Clementina, Benedita, João Batista, todos nós nascemos nas proximidades de Charqueada.
O senhor trabalhou na lavoura?
Até os 12 anos, trabalhei na cultura de café, milho e algodão. O meu pai era colono de café.
A partir dos 12 anos que trabalho o senhor passou a fazer?
Fui viajar com tropa, os tropeiros eram Alfredo Rodrigues de Moraes, Domingos Chiaramelo, João Sebe. Mais tarde, em Piracicaba, trabalhei com o famoso tropeiro José Pretel, que construiu a casa da Rua São José esquina com a Rua do Rosário, onde veio a ser gabinete do Prefeito Municipal (Adilson Benedito Maluf) e onde funcionou o Samdu (Serviço de Atendimento Médico de Urgência), e até pouco tempo foi sede da Uniodonto de Piracicaba. Trabalhei como tropeiro até os 22 anos. Eu era bom cavaleiro, um tropeiro se interessou pelo meu desempenho e me colocou como “madrinheiro de tropa”, o cavaleiro cujo cavalo tem um sino dependurado no pescoço e é seguido pelos demais animais da tropa (cavalos, éguas, mulas, burros).
Como era composta a tropa?
Geralmente, viajávamos em três tropeiros levando um número variável de animais, 20, 30, 50. Andávamos o dia todo, parávamos em lugares pré-determinados, os proprietários desses locais, chamados de pousos, alugavam os pastos para deixarmos os animais. Dormíamos onde dava até mesmo ao relento, tínhamos o pelego que fazíamos de colchão e o poncho era o nosso cobertor. Viajávamos pela região de Piracicaba: Rio Claro, Botucatu e outras localidades próximas.
O senhor foi jóquei?
Em São Pedro, havia uma raia, onde havia as corridas de cavalo, lá eu disputei muitas corridas, tenho 1,60m de altura e sempre pesei 60 quilos.
Quando foi seu ingresso na Força Pública?
Foi nessa época. Achei que deveria trabalhar na polícia, havia um decreto recrutando candidatos a soldados da Força Publica. Uma comissão veio até Piracicaba onde cadastrou os interessados. Nas instalações existentes até hoje, na rua São José esquina com Luiz de Queiroz, foi feito o cadastro de mais de uma centena de candidatos. Dormíamos lá, e fazíamos os exames na Rua do Porto, um médico acompanhava as provas de resistência, corridas de 100 metros com pés descalços, 1000 metros calçado com botina ou sapatão, o chão era de terra. De 300 candidatos apenas 106 seguiram para São Paulo, para realizarem exames mais detalhados. Fomos de trem com passagem fornecida pelo Governo do Estado. Dessa centena de candidatos foi escolhida uma dezena, os demais foram dispensados.
Chegando a São Paulo, para onde os candidatos se dirigiram?
Fomos para a Avenida Tiradentes esquina com Jorge Miranda, junto ao Primeiro BC (Batalhão de Cavalaria) e o Primeiro BG (Batalhão de Guarda), na esquina havia a escola de polícia. Após seis meses de estudos, em 1942, “passei a pronto”, pedi para trabalhar em Campinas, batalhão que destacava em Piracicaba.
Como soldado da Força Publica, qual foi seu primeiro trabalho em Piracicaba?
Nos tempos da Segunda Guerra Mundial, as usinas de força eram guarnecidas. Na região, tínhamos diversas usinas de energia, em Piracicaba, Carioba, Joaquim Egidio, Salto Grande. Em Piracicaba, ainda existe os prédios onde funcionava a usina de força, próxima à Fábrica de Tecidos Boyes. Quando vim trabalhar pela primeira vez em Piracicaba, vim para a guarda da usina, eu morava no quartel situado na esquina da rua São José com Luiz de Queiroz, o prédio permanece ainda lá, em cima funcionava a Força Pública, embaixo no porão era o quartel da Guarda Noturna. Por muito tempo, fiz as refeições na pensão do João Buriol, ele era negro, sua esposa chamava-se Escolástica, situava-se na rua Boa Morte entre a XV de Novembro e Rangel Pestana, aonde mais tarde veio a funcionar o Hotel Brasil. Na esquina da rua Boa Morte com D. Pedro II havia um posto de gasolina, era o Posto São João, de propriedade do Nathan, e arrendado ao Benedito Rocha, o prédio existe ainda. Por um período de tempo tomei as refeições no Bar São Benedito, de propriedade de João Zaia, ao lado da catedral e junto onde hoje existe um supermercado, entre rua XV de Novembro e Moraes Barros. Naquele local existiam os chamados “expressinhos”, de propriedade da família Gianetti, era automóveis Ford 1941 que faziam viagens de Piracicaba a São Paulo, era o único meio de transporte rodoviário para São Paulo, não existia linha de ônibus.
Como era o leito das ruas de Piracicaba nessa época?
Era chão de terra com pedregulho, um determinado vereador não dizia “pedregulhar a cidade” e sim “apedrejar a cidade”.
Quando o senhor se casou?
Casei em 1o de dezembro de 1946 com Zoraide Conceição. Como na época a catedral estava em reforma o meu casamento foi celebrado na Igreja São Benedito, tive como padrinhos Antonio Oswaldo e Serafim Tricânico, proprietário de dois ônibus que faziam a linha de Piracicaba a Torrinha. Fomos residir na Rua D. Pedro II, próximo à Rua Boa Morte, em frente ao Externato São José. É anterior a minha época, mas diziam que ali havia carrinhos de tração animal que transportavam quem os contratasse, a semelhança dos carros que servem como taxi. Contava-se na época que Nhô Felix tinha ali um carrinho de aluguel, era um carrinho muito bonito, puxado por um cavalo também muito bonito, com isso todo mundo dava preferência ao carrinho de Nhô Felix. Por esse motivo, o cavalo trabalhava demais. Isso gerou uma referência, quando a pessoa sentia que estava trabalhando demais, ela dizia: “Você está pensando que eu sou cavalo de Nhô Felix?”
Nessa época, o senhor era soldado, como era a farda?
Usava-se sapatão onde era encaixada a perneira, usava-se culote, que era uma calça sem barra, era amarrada embaixo, em seguida tinha a túnica e o quepe. A túnica tinha sete botões, o quepe tinha a figura de dois fuzis cruzados. Na cintura tinha um revolver Colt Cavalinho calibre 38, tambor de seis tiros, oxidado. Levava também um fuzil que tinha um pente com cinco balas. Durante todo o tempo em que estive no Oitavo BC em Campinas eu tive um fuzil, para onde eu fosse como destacado ou em diligencia eu levava esse mesmo fuzil. Aos 23 anos fui destacado como soldado em Santa Maria da Serra, na época uma pequena vila, havia um cidadão de nome Antonio Ribas, trabalhador de roça, que respondia pela segurança da localidade, fazia às vezes de delegado, eu era a única força policial local.
Em que local o senhor se hospedava?
Eu morava na cadeia. Na pensão de Olimpio de Campos eu tomava minhas refeições. Eu preferia dormir na cadeia onde tinha mais conforto e segurança. Não havia ninguém preso. Naquele tempo ninguém tinha chuveiro quente, tomava-se banho em uma bacia. Quando estive no quartel em São Paulo existia o banho de chuveiro, porém com água fria. Em Piracicaba, não existia chuveiro elétrico, a energia elétrica distribuída não suportava a instalação de chuveiro.
O senhor trabalhou em Limeira?
No tempo da Segunda Guerra trabalhei na Machina S. Paulo em Limeira, dizia-se que era indústria de material bélico, de propriedade do Dr. Trajano de Barros Camargo. A empresa era guardada por 10 soldados, as refeições eram feitas em uma pensão, foi adaptado um quarto para os soldados dentro da própria indústria.
O senhor estava aquartelado em Campinas?
Estava, até que veio uma comissão para selecionar soldados para completar o batalhão de São Paulo. Pela ficha sanitária dos 1800 soldados existentes em Campinas, Geraldo Arruda que era da cidade de Rio das Pedras e eu fomos os selecionados para integrar o Primeiro BC, em São Paulo.
Qual foi o local em que o senhor passou a trabalhar?
Fui prestar serviços no Carandiru, no bairro Santana, ficava na muralha vigiando os presos, com o fuzil embalado. Permaneci trabalhando lá por uns três anos. Dormia no quartel na Avenida Tiradentes. Todos os dias um grupo de 30 soldados saia do quartel e ia até o Carandiru, a pé.
O senhor conheceu Meneghetti?
Cheguei a ver o famoso ladrão Gino Amleto Meneghetti, era um homem de estatura pequena, mas muito esperto.
O senhor trabalhou em Pirassununga?
Em Pirassununga havia uma escola voltada ao ensino agrícola, a grama dos jardins dessa escola foi plantada por presos de guerra. Éramos em 14 soldados para cuidar de pouco mais de duas dezenas de presos italianos, eles foram aprisionados quando estavam no navio SS Conte Grande. Foi feito um cercado eles não podiam fugir de lá. Tinha um alojamento de presos e outro menor para os soldados. Eram presos que não ofereciam nenhum perigo, tinhamos uma relação muito cordial, havia um soldado que era o nosso cozinheiro e um preso italiano que era cozinheiro dos presos, muitas vezes fui comer no alojamento dos presos, a comida era bem melhor. Isso foi no tempo em que Fernando de Souza Costa era o interventor no Estado de São Paulo.
Em que ano o senhor voltou á Piracicaba?
Fui destacado para Piracicaba em 1944, fiquei alojado no quartel situado na esquina da Rua Luiz de Queiroz com São José. Nessa época a cidade não tinha calçamento, só havia pedregulho na cidade. Como soldado trabalhava a pé. Por muito tempo trabalhei na Caça e Pesca, os fiscais eram Geraldo Pinto de Almeida e Nonô, ambos civis.
O senhor conheceu João da Curva?
Conheci-o e o irmão dele o Titi. João da Curva morava na Rua Alferes José Caetano, entre as Ruas D. Pedro I e Rua Ipiranga, era proprietário de um rancho de pescaria. Estive no rancho dele varias vezes, era um bom cozinheiro. Entre as muitas histórias que ele contou, uma delas foi a seguinte: “Ele foi fazer uma necessidade orgânica, tirou o relógio do pulso e colocou em uma pequena árvore, após satisfazer a necessidade, saiu e esqueceu o relógio. Passados 10 anos ele lembrou-se, voltou ao local, a árvore estava crescida, grande, foi quando ele viu lá no alto o relógio, escutou tic, tic, tic, o relógio trabalhando!”. Ele passou a ser chamado de João da Curva pelo causo que ele contou para muita gente, inclusive para mim, dizia que queriam matar um veado, na hora em iam atirar o veado fazia uma curva e erravam o tiro. O que ele fez? Entortou o cano da espingarda, quando o veado fez a curva ele atirou, acertando o veado. Isso ele contou para mim!
O que o senhor disse a ele?
Apenas dei risada! Não queria perder o amigo. Ele contava tudo isso muito sério.
Quanto tempo o senhor permaneceu na Força Pública?
Trabalhei por nove anos, dei policiamento quando Getúlio Vargas, Brigadeiro Eduardo Gomes, Luis Carlos Prestes estiveram em Piracicaba. Quando o Partido Comunista foi fechado em Piracicaba eu tomei posse do prédio em nome da lei, localizava-se em uma rua existente onde mais tarde foi construído o Comurba e hoje abriga o Poupatempo. Conheci Adhemar de Barros, o primeiro delegado regional de Piracicaba Dr. Calmon de Brito foi até um rancho de pescaria, onde Adhemar estava pescando, sem camisa, chinelo, shorts, foi Dr. Calmon quem cuidou para preservar a privacidade de Adhemar, achei um gesto muito bonito.
O senhor fez muitas prisões em Piracicaba, pode citar algum nome em especial?
Prendi Pedro Lopes, um conhecido ladrão de cavalo. Recebemos a denuncia de que ele estava em Pirassununga, tomei um carro de aluguel (taxi) e fui até aquela cidade onde dei voz de prisão a ele. Na noite de 29 a 30 de agosto de 1945 estavam presos Pedro Lopes, Mathias Gonçalves e Sérgio Bandido, três malfeitores que batiam, roubavam e matavam. Era responsável pela guarda, também chamado de “cabo de guarda”. Desconfiei do comportamento dos presos, alertei os dois soldados que estavam subordinados as minhas ordens. No dia seguinte Pedro Lopes teve a fuga facilitada por outro cabo de guarda, que foi expulso da polícia.
Em que ano o senhor deixou a polícia?
Foi em 1949. Fiz uma abordagem a um marginal armado de revólver que apontava a mesma à cabeça de um refém, com um golpe só desarmei-o. Ele foi ferido, correu um processo, onde por interferências políticas fui afastado da Força Publica. Mais tarde, tive reconhecido meu perfeito desempenho na ação, e poderia ser reintegrado, mas já estava trabalhando em melhores condições na Faculdade de Odontologia de Piracicaba, onde permaneci por 26 anos, como responsável pela manutenção e almoxarifado. Na FOP, convivi com grandes nomes como Prof. Liberalli, Prof. Antonio Carlos Nedeer, Profa. Clotildes Fernandes, Prof. Miguel Morano Júnior, Prof. Eduardo Daruge, Prof Waldemar Romano e tantos outros.
Extraída de: http://www.tribunatp.com.br/modules/news/article.php?storyid=9473
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