11 novembro 2011

O guarda se chama Angelo Matiero


Colunistas

Sexta-feira, 11/11/2011

José Carlos Fernandes

Foto: Antônio More Arte: Felipe Lima
Foto: Antônio More Arte: Felipe Lima /

O guarda se chama Angelo Matiero

Publicado em 11/11/2011 | JCFERNANDES@GAZETADOPOVO.COM.BR
Os efeitos colaterais das rasteiras da vida podem ser, não nessa ordem, o Seproc, uma íngua na virilha, a sovinice ou uma romaria desesperada para Aparecida do Norte. No caso do curitibano Angelo Matiero, os dias ruins fizeram dele um poeta. Um poeta que nem suspeitava ser. Vinha das “Exatas”. Cursara Teleco­­municações no Cefet, Infor­­mática na PUC e ganhava seu pão – pão com frutas cristalizadas, diga-se – dissecando números: era um bem pago analista de sistemas. Rima, só se fosse de software com hardware.
Até que se viu, com a bobeira de quem bate o nariz num poste, sem emprego, sem dinheiro e de farda, assumindo seu posto numa longínqua chácara de recuperação de dependentes químicos. Aos 35 anos e recém-casado, o analista virara guarda municipal. No lugar de tabelas, malucos beleza cantando no bosque: “Oh! Oh! Oh! Seu moço do disco voador, me leve com você, pra onde você for, mas não me deixe aqui, enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí...”
Matiero, deprê, quase se juntou ao coro para cantar Raul. Mas, sabe-se lá, preferiu aproveitar a brisa e escrever uns versos regados a Sonho de Valsa. Foi sua estreia literária, mas a turma o saudou como se estivesse lançando uma antologia completa. Tanto que começaram a pedir o poema emprestado para oferecer, como se fosse deles, às esposas e namoradas – uma falcatrua em prol da família.
Não se sabe dos efeitos da overdose lírica sobre aquelas mulheres. Mas no que diz respeito ao autor, não poderia ser melhor. Por causa da poesia, Matiero retomou uma história deixada às traças. Gostara antes das letras do que das contas de vezes. Mal saíra das fraldas e já sabia ler “Omo”, “Doriana” e “Elefante” – o da marca de tomate.
Além do mais, tivera bons exemplos: o pai, Benedito Mon­­­teiro, era homem de imprensa e escritor em segredo. E o filho bem que tentara sair-se aos seus. Aos 16 anos, depois de ter lido Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, deu de imitar o romântico em tísica. Mas, como lhe di­­­ziam, jovem pobre do Pilarzinho tinha de arrumar era emprego, e não sarna para se coçar. A arte ficou para depois, como se sabe, para o dia em que arrumou o emprego que não queria.
Aos fatos – fardado, o arquitímido Matiero começou a ser parado na rua para informes ligeiros – de “roubaram a roupa do varal” e “onde fica a Rua Zibniew Stransky?”. Passou a conhecer gentes e notou que não falavam com ele, mas com uma abstração trajando farda. Bingo – podia observá-las e entendê-las, como cabe a um escritor. A nomeação para ser guarda de escola só melhorou seu ponto de vista. Além das condições propícias para ler de Nietzsche a Rilke, de Vinícius a Leminski nas barbas do expediente, podia finalmente retomar o gosto que lhe foi tirado nos verdes anos.
“O guardinha tá estudando?”, lhe perguntou dia desses uma das aluninhas da Escola Municipal Nimpha Peplow, na Vista Alegre, onde trabalha. Não deixa de ser. Matiero soma 150 textos. E manda bem, o danado, mesmo quando escreve em meio à gritaria do recreio. Ao contrário dos autores aprendizes, demora a dar um verso ou um conto por acabado. Aplica a cada linha os rigores da caserna, mas sem deixar de ser lúdico – influência das crianças com as quais lida das 7h30 às 18 horas.
“Escrever é uma maneira de mostrar quem é o cara vestido de guarda”, me avisa. Sua voz é talhada para as ondas do rádio. Vê-lo lendo para os pequenos no pátio do Nimpha parece mentira, tão bonito é. Nem tive coragem de perguntar se alguma vez ele precisou usar o cacetete. Qual o quê. Não é todo dia que um guarda nos fala sobre o poder da imaginação, indica o melhor caminho para o Centro e ainda deixa a certeza de que nunca vamos esquecer qual é mesmo o seu nome.

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