Christiane Vasconcelos
Advogada graduada na Associação de Ensino Superior de Olinda - AESO, especialista em Direito do Trabalho e Direito Administrativo pela UFPE, professora de Teoria Geral do Direito do Trânsito do curso de Especialização de Ciências do Trânsito da Universidade Salgado de Oliveira – Universo/Recife, membro da Análise de Defesa da Autuação, Presidente de Junta Administrativa de Recursos de Infrações de Trânsito do Recife, ex-assessora jurídica da Companhia de Trânsito e Transporte Urbano – CTTU/Recife.
I – Considerações iniciais
Antes de adentrar no aspecto meritório do tema destacado, convém abordar, ainda que de forma superficial, a previsão de municipalização do trânsito no Código de Trânsito Brasileiro – CTB (Lei nº 9.503, de 23/09/1997), Código este que elenca, em seu artigo 5º, os integrantes do Sistema Nacional de Trânsito - SNT, dentre os quais se encontram os Municípios, senão vejamos:
“Art. 5º. O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (...)” – grifo nosso.
Aludido Código enumera, dentre outras, as matérias de competência do órgão executivo de trânsito da União (art. 19), dos Estados (art. 22) e dos Municípios (art. 24), observando-se através da exegese de tais dispositivos codificados, que as matérias são diversas e que o CTB adere, o que não poderia ser diferente, ao princípio constitucional da autonomia das entidades federadas, previsto nos artigos 1º e 18, da Carta Magna, os quais enfocam claramente a ausência de hierarquia entre aquelas entidades. O atual CTB traz uma ampliação dos poderes reservados aos Municípios, dando-lhes um destaque importante, sendo de relevo as funções de organização do trânsito urbano e de aplicação e arrecadação de multas em inúmeros casos. Reserva-se aos Estados a competência, sobretudo, para licenciar, vistoriar e emplacar veículos.
Diante da separação contida no CTB, resta perceptível que o Estado deve cuidar das matérias elencadas, de sua competência, assim como os Municípios, os quais deveriam ter se adequado a essas normas em janeiro de 1998, quando as mesmas entraram em vigor. No entanto, a adequação não ocorreu imediatamente em todos os Municípios, mas paulatinamente, haja vista que a grande maioria dos Municípios não possuía estrutura e condições de assumir tais atribuições, já que a integração ao SNT significaria a necessidade de observância de alguns requisitos contidos nas Informações para o Cadastro do Município ao aludido Sistema, emitidas pelo Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN. Dentre tais requisitos, deveria ser encaminhada àquele Departamento, para homologação e cadastro, dentre outros, a legislação de criação de órgão municipal executivo de trânsito com os serviços de engenharia do trânsito, educação do trânsito, controle e análise dos dados estatísticos e fiscalização, ou seja, somente haveria a integração do Município já detentor de legislação e equipe técnica formada.
Sendo a fiscalização do trânsito um dos assuntos mais debatidos nesta área, principalmente quando a mesma é executada através da Guarda Municipal, passamos a tratá-lo mais enfaticamente.
II – Possibilidade da Guarda Municipal fiscalizar o trânsito
É perceptível a polêmica existente em torno da fiscalização do trânsito pela Guarda Municipal, polêmica esta que tem como foco a interpretação do disposto no artigo 144, § 8º, da Carta Magna, o qual dispõe:
“Art. 144. (...)
§ 8º. Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.”
Para os intérpretes e aplicadores do Direito que adotam uma exegese restritiva, o dispositivo transcrito restringe a competência da Guarda Municipal à proteção de bens, serviços e instalações, não sendo possível, portanto, que os servidores que a integram fiscalizem o trânsito. Referido posicionamento é corroborado por pareceres exarados pelo Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN e pelo Ministério das Cidades.
É importante destacar, data venia, que a contrariedade ao disposto na Constituição Federal de 1988 é gritante diante do entendimento de que a guarda municipal não pode fiscalizar o trânsito, por diversos motivos que passaremos a abordar.
Os artigos 1º e 18 magnificados tratam da autonomia dos Municípios, integrantes que são da República Federativa Brasileira, afirmando que:
"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos (...)
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos
autônomos, nos termos desta Constituição.” – negrito nosso.
Resta clarividente, então, que o modelo de federação adotado no Brasil enfatiza, constitucionalmente, a autonomia do Município, acarretando, a inobservância de referida autonomia, a “quebra” da organização político-administrativa e, conseqüentemente, a forma federativa de Estado, cuja abolição não pode, sequer, ser objeto de deliberação como proposta de emenda, por ser a mesma considerada cláusula pétrea, prevista no artigo 60, § 4º. Entendemos que, no momento em que a autonomia municipal está sendo deixada “à margem” em discussões como esta, está-se tacitamente abolindo a forma de federação adotada pela nossa Carta Magna.
Não há como se interpretar isoladamente o artigo 144, § 8º, da Constituição Federal, devendo ser utilizada uma interpretação sistêmica acerca do tema.
Segundo Miguel Reale1:
“Cada artigo de lei situa-se num capítulo ou num título e seu valor depende de sua colocação sistemática. É preciso, pois, interpretar as leis segundo seus valores lingüísticos, mas sempre situando-as no conjunto do sistema” – grifo nosso.
O disposto no artigo 144, § 8º, da Constituição Federal, não pode ser abordado fora da autonomia municipal, haja vista que as normas devem ser interpretadas no seu conjunto, principalmente, quando se trata de normas constitucionais, como é o caso em tela. É indiscutível a autonomia dos Municípios, motivo pelo qual seria incoerente acreditar que a organização e as atribuições da Guarda Municipal fossem “engessadas” em um dispositivo insusceptível de interpretação extensiva, somente sendo passível de mudanças por emenda constitucional. O ínsito no referido artigo tem ampla possibilidade de ser interpretado extensivamente, por não ser taxativo, assim como acontece com outros dispositivos constitucionais, como bem lembrou Rosenira Santos2, ao citar o artigo 133 magnificado, o qual se reporta à imprescindibilidade do advogado. Lembra que, apesar da Magna Carta afirmar que o advogado é essencial, não foi o jus postulandi da Justiça do Trabalho e da Lei nº 9.099/95 (Juizados Especiais) declarado inconstitucional.
É cediço que a competência para legislar sobre normas gerais de trânsito é privativa da União, como dispõe o artigo 22, XI, do nosso diploma maior, estando referidas normas previstas no Código de Trânsito Brasileiro – CTB, o qual, no artigo 280, § 4º, afirma que:
“Art. 280. (...)
§ 4º. O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência”. – grifo nosso.
O dispositivo supratranscrito é clarividente de que servidor civil pode exercer a fiscalização do trânsito e, sendo o guarda municipal um servidor civil e diante de
uma interpretação extensiva do artigo 144, § 8º, não há empecilhos para a execução da fiscalização por tal servidor.
Contudo, o Parecer nº 256/2004/CGIJF/DENATRAN, de 12/03/2004, emitido em razão de consulta da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Processo Administrativo nº 80001.000904/2004-04), afirma:
“(...) concluímos que a Guarda Municipal não tem competência para atuar na fiscalização de trânsito e nem, como decorrência, admissibilidade com vistas a aplicar multas de trânsito sob pena de nulidade das mesmas (...)”
É importante ficar claro que o agente de trânsito, seja ele servidor civil (guarda municipal ou não) ou policial militar, não aplica multa de trânsito, mas tão-somente realiza a autuação da infração, através da lavratura do auto (art. 280, § 4º, codificado), tendo em vista que a aplicação da penalidade é atribuição da autoridade de trânsito, após julgar consistente o auto de infração lavrado pelo agente, como consta no caput do artigo 281 do mesmo diploma legal.
Contudo, outra polêmica é levantada pelos adeptos da impossibilidade da fiscalização pela guarda municipal, referente à necessidade de concurso público para agente de trânsito, afirmando-se, inclusive, que o artigo 280, § 4º, do CTB, dispõe que somente o policial militar deve ser designado e não o servidor civil, já que a expressão “designado” se reporta tão-só ao último, qual seja, policial militar.
Dividimos este assunto em dois pontos:
a) o artigo 37, II, da Carta Magna, afirma que: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”;
b) a expressão “designado” contida no artigo 280, § 4º, do CTB.
No tocante ao estabelecido no item a, é cediço que a investidura na Administração Pública ocorre mediante concurso público, salvo as exceções de cargo em comissão e dos estáveis previstos no artigo 19, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Assim, obedece a tal regra o guarda municipal, por ser este um servidor público, tendo que, obrigatoriamente, ser concursado.
Posteriormente à nomeação, é o mesmo designado para exercer a fiscalização do trânsito, assim como ocorre com o policial militar.
É salutar informar que, em muitos editais de concurso público para guarda municipal, como ocorreu no Município do Recife, já se encontra, dentre as atribuições da Guarda, a fiscalização do trânsito no âmbito municipal.
Independentemente de integrar o edital do concurso, os guardas até então concursados, poderiam adequar-se à nova atribuição, desde que recebessem treinamento, capacitação e fossem designados e credenciados por portaria, como determina o roteiro para municipalização emitido pelo DENATRAN. Quanto à alegação de que a guarda municipal não pode fiscalizar o trânsito por ser esta atividade exercida paralelamente às atividades específicas previstas no art. 144, § 8º, da Constituição Federal, deve ser tal fato analisado de per si, pois diversos órgãos executivos de trânsito municipais, ao designar o guarda municipal como agente de trânsito o afasta da atividade protetiva de bens, como ocorre no Município do Recife. Repita-se que o dispositivo constitucional requer uma interpretação extensiva, diante da autonomia e competência municipais (estando esta prevista no artigo 30), restando claro que a leitura do dispositivo não pode ser taxativa, pois não poderia o constituinte enfocar tanto a autonomia dos Municípios e, concomitantemente, informar em que iria atuar a guarda municipal.
No tocante à atribuição para fiscalizar o trânsito, pode esta ser acrescida às demais atribuições da Guarda Municipal mediante decreto, tendo em vista que o artigo 48 da Constituição Federal, o qual trata da competência do Congresso Nacional, foi modificado pela Emenda nº 32/2001, sendo retirada da sua redação a referência à estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da Administração Federal. Pelo princípio da simetria, tal norma se aplicava ao Município, tendo sido dispensada a estruturação e a definição de atribuições por lei, sendo possível a sua feitura por Decreto, ou seja, é possível que o prefeito organize o trânsito, inclusive sua fiscalização, desde que isto ocorra mediante um decreto, o que ocorreu em vários municípios. Contudo, o que não é possível é que aludido decreto extrapole a competência fixada no artigo 24, do CTB, o que acarretaria, não a inconstitucionalidade da fiscalização do trânsito pela guarda municipal, mas a ilegalidade do decreto perante o CTB.
Diante disto, passamos a debater o item b.
O entendimento de que a expressão “designado” se reporta tão-somente ao policial militar, por se encontrar a referida expressão no singular, é bastante equivocado, podendo ser interpretado de acordo, inclusive, com a regra gramatical, a qual afirma que o “ou” é excludente, de forma que não poderia ser servidor civil ou policial militar designados, o que somente ocorreria se fosse servidor civil e policial militar designados. Da mesma forma seria se o artigo indicasse “policial militar ou servidor civil designado”, o que significaria que ambos seriam designados e não apenas o servidor civil. O “ou” existente no dispositivo (servidor civil, estatutário ou celetista, ou policial militar designado) exclui a possibilidade do adjetivo posterior estar no plural, diferentemente do “e”. Sendo assim, não há empecilho quanto à designação do guarda municipal para exercer aludida fiscalização, pois a nomeação do mesmo ocorre após a aprovação em concurso público, assim como acontece com o policial militar, devendo ambos, posteriormente, ser designados para a fiscalização do trânsito.
III - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resta perceptível, contudo, que a polêmica em torno da constitucionalidade do guarda municipal atuar como agente de trânsito não tem razão de ser, haja vista ser o mesmo um servidor civil concursado, não havendo restrição na Constituição Federal quanto à concessão dessa atribuição a este servidor, já que cabe ao Município organizar o funcionamento dos seus órgãos, tendo em vista a autonomia assegurada a tal entidade federada.
Frise-se, ainda, que todas as normas são consideradas constitucionais até que sejam declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal – STF, através do controle concentrado de constitucionalidade ou em decorrência da análise de um Recurso Extraordinário, dependendo o último caso, de que o Senado Federal, com base no artigo constitucional 52, X, suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF.
Sendo assim, todas as autuações realizadas pelo guarda municipal designado para a fiscalização do trânsito, desde que treinado, capacitado e credenciado em portaria nominal pelo órgão executivo de trânsito e atuando dentro da competência prevista no artigo 24 do CTB, devem ser consideradas constitucionais, portanto, plenamente válidas.
1 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, Ed. Saraiva, p. 275.
2 SANTOS, Roseniura. Fiscalização do trânsito pela Guarda Municipal: possibilidade jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 865, 15 nov. 2005. Disponível em:
Publicado no Boletim de Direito Municipal. Editora NDJ. Julho/2007
BIBLIOGRAFIA
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, Ed. Saraiva, p. 275.
SANTOS, Roseniura. Fiscalização do trânsito pela Guarda Municipal: possibilidade jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 865, 15 nov. 2005.
Disponível em: . Acesso em: 28 mar. 2007.
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