1. Introdução
A segurança é um direito fundamental do cidadão, alçado pelo artigo 5º da Constituição Federal ao mesmo patamar do direito à vida, à liberdade e à propriedade. Conforme define o artigo 144, a segurança pública constitui um dever do Estado e uma corresponsabilidade de todos. O desafio estratégico, contudo, reside na materialização desse direito em um país onde a criminalidade se manifesta primordialmente no espaço urbano, ou seja, no território dos municípios. É nesse contexto que a atuação municipal se torna um pilar indispensável para a preservação da ordem e da paz social.
O objetivo deste relatório é conduzir uma análise aprofundada da evolução histórica e conceitual da segurança pública municipal no Brasil, delimitando a parcela de participação e a crescente responsabilidade dos municípios na prevenção e no combate à criminalidade local. Este documento foi concebido como uma referência para gestores públicos e profissionais da área, abordando os fundamentos históricos que moldaram as instituições policiais, os conceitos-chave que definem sua atuação e o arcabouço jurídico que legitima e orienta a ação municipal.
Para compreender plenamente o cenário atual e os desafios impostos aos governos locais, é imprescindível examinar as origens históricas que deram forma às instituições de segurança no país e que ainda hoje influenciam sua estrutura.
2. Gênese Histórica da Segurança Pública no Brasil
A compreensão da estrutura contemporânea da segurança pública brasileira exige uma análise rigorosa de suas raízes históricas. As primeiras formas de policiamento estabeleceram as bases institucionais e culturais sobre as quais as corporações atuais foram edificadas, e seus legados persistem até hoje.
A gênese das instituições de segurança no Brasil iniciou-se com a formação de milícias locais, estruturas reativas que representaram os primórdios da organização da força no território. Contudo, esse modelo localizado mostrou-se insuficiente para as demandas de uma nação em crescimento. A busca por um sistema mais robusto e centralizado levou à adoção de princípios da gendarmeria francesa, um modelo hierárquico que influenciou profundamente a subsequente criação formal da polícia no Brasil. Essa escolha não apenas moldou a estrutura organizacional das forças de segurança, mas também instilou uma cultura de controle eminentemente estatal, cujos reflexos ainda hoje são percebidos nas dinâmicas de poder e cooperação entre estados e municípios.
Essa trajetória evolutiva evidencia a necessidade de definir com precisão os conceitos que norteiam a atuação policial no Estado Democrático de Direito.
3. Fundamentos Conceituais da Atividade de Segurança
A formulação de políticas de segurança pública eficazes e juridicamente sólidas depende de uma irrestrita clareza conceitual. A distinção precisa entre termos como "defesa social" e "segurança pública" é fundamental para a correta aplicação da lei, a distribuição de competências entre os entes federativos e o alinhamento das ações com os princípios constitucionais.
Defesa Social abrange um conjunto amplo e intersetorial de políticas públicas voltadas para a prevenção da violência e a promoção da paz, integrando áreas como educação, saúde, urbanismo e assistência social. Trata-se de uma abordagem sistêmica que busca atacar as causas primárias da criminalidade.
Segurança Pública, por sua vez, é um componente da defesa social, focado na atuação do aparato estatal para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Sua natureza é mais reativa e coercitiva, embora também contemple dimensões preventivas.
A complexidade do termo "polícia" reside na dicotomia entre sua função (sentido original) e sua denominação (sentido usual). Em sua essência funcional, conforme define Amaral (2003), polícia é “a atividade do Estado que consiste em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”. Historicamente, do Estado Novo (1937) até a Constituição de 1988, o conceito de ordem pública era praticamente sinônimo de segurança. Com a redemocratização e a ampliação das atribuições estatais, essa noção expandiu-se para englobar as ordens econômica e social, o que resultou em uma ampliação do poder de polícia e, consequentemente, impôs uma maior carga operacional e uma oportunidade estratégica aos municípios, que ganharam um mandato mais amplo para atuar na garantia do bem-estar local.
Um dos pilares da atuação municipal é o policiamento ostensivo e preventivo. Essa modalidade se baseia na implantação estratégica de pessoal uniformizado e viaturas caracterizadas para criar uma percepção tangível de segurança. O objetivo é alterar o cálculo de risco de potenciais infratores e reduzir proativamente as oportunidades para a prática de crimes antes que eles ocorram, constituindo a primeira linha de defesa da comunidade.
Enquanto esses conceitos definem o o quê e o porquê da atividade de segurança, sua aplicação prática é governada pela estrutura federativa do Brasil, que atribui responsabilidades específicas e, por vezes, sobrepostas. É dentro desse complexo arcabouço de competências que o município encontra seu papel moderno na segurança pública.
4. O Município como Ente Federativo na Segurança Pública
No pacto federativo brasileiro, embora a segurança pública seja um dever do Estado em sentido amplo, a Constituição Federal estabelece um robusto conjunto de competências que não apenas legitima, mas exige a participação ativa dos municípios. Longe de ser um ator secundário, o município é um ente federativo dotado de autonomia e responsabilidades que o posicionam na linha de frente da prevenção e da garantia da ordem local. A atuação municipal é fundamentada nas seguintes prerrogativas constitucionais:
• Autonomia Municipal: O município possui autonomia para legislar sobre assuntos de interesse local. Essa prerrogativa é a principal ferramenta jurídica que permite a um gestor municipal criar um plano de segurança adaptado aos desafios específicos de seu território — como a criminalidade em zonas comerciais ou a violência no ambiente escolar —, em vez de depender exclusivamente de estratégias estaduais generalistas.
• Competência Comum: A Constituição estabelece um regime de cooperação e corresponsabilidade entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Essa competência comum legitima a atuação municipal em colaboração com outras esferas de governo em áreas que impactam diretamente a segurança, como a proteção do patrimônio público e o fomento a programas sociais de prevenção.
• Competência Concorrente e Local: Os municípios detêm competências específicas para organizar e prestar serviços públicos de interesse local e, em matérias concorrentes, podem suplementar a legislação federal e estadual. Esses fundamentos conferem aos municípios a legitimidade para instituir e manter órgãos próprios, como as Guardas Municipais, destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações.
O principal instrumento jurídico para a organização e a estruturação dos serviços de segurança pública em nível local é a Lei Orgânica do Município. É por meio dela que o poder municipal define sua estrutura administrativa, cria secretarias de segurança ou gabinetes de gestão integrada e estabelece as diretrizes para a atuação de suas forças, institucionalizando sua política de segurança.
Esta sólida estrutura jurídica, alinhada aos fundamentos conceituais da segurança, demonstra de forma inequívoca a crescente relevância e legitimidade da atuação municipal neste campo.
5. Conclusão: A Consolidação do Papel Municipal
A trajetória da segurança pública municipal no Brasil revela uma clara evolução: das formas embrionárias de policiamento, como as milícias, à consolidação do município como um ator essencial na arquitetura de segurança do país, com responsabilidades e competências firmemente estabelecidas pela Constituição Federal de 1988. O crime ocorre nas cidades, e é nelas que a prevenção e a primeira resposta devem ser mais eficazes.
A eficácia da segurança pública contemporânea depende de uma atuação sistêmica e da compreensão clara dos papéis de cada ente federativo. Nesse sentido, o governo federal tem incentivado a adoção de políticas de cooperação, estimulando os municípios a desenvolverem ações conjuntas com outras instituições para diminuir a criminalidade, prevenir a violência e promover os direitos humanos.
O fortalecimento da segurança pública municipal, com ênfase na prevenção, na integração comunitária e na gestão inteligente dos recursos locais, é um caminho indispensável para a construção de uma sociedade mais justa e segura. A materialização do direito fundamental à segurança passa, necessariamente, pelo reconhecimento e pelo fomento da capacidade de ação do poder local. Como afirmou Sir Robert Peel (1828), primeiro ministro britânico entre 1834 e 1835 e fundador da Polícia Metropolitana de Londres (citado por Rolim, 2006, p. 70), reforçando a indissociável relação com a comunidade: "A polícia é o público e o público é a polícia".
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Inspetor Frederico