26 agosto 2022

Comentários sobre a Decisão da 6ª Turma do STJ (Recurso Especial nº 1.977.119/SP)

 

Não há que se falar em Direito e Justiça, sem que antes façamos uma breve reflexão sobre ética, moral e legalidade. A luta pelo direito e a busca pela harmonia do positivismo é uma constância natural que se perpetua no tempo, nas sociedades e na cultura evolutiva dos povos e civilizações. Grandes pensadores ao longo dos séculos se debruçaram e dedicaram exaustivamente seus esforços neste sentido. Assim, com a devida vênia, faremos menção do pensamento de uma destas celebres personalidades:

Rudolf Von Ihering, renomado jurista alemão, no ano de 1872, logo após seu pronunciamento em uma conferência na Sociedade Jurídica de Viena, publicou uma das mais importantes obras de direito do século XX, “A Luta pelo Direito”[1].

De maneira lúdica passou a tratar sobre um assunto tão complexo e intangível, que vem a ser o efetivo significado da palavra Direito e lesão ao “seu direito”. Habilidosamente utilizando como foco principal de dissertação da sua tese o conto escrito por Willian Shakespeare, “O mercador de Veneza”.

Preliminarmente, antes de abordar o foco principal dos seus estudos, visando embasar seu entendimento, utiliza uma comparação muito importante, a qual auxilia no exato entendimento sobre a noção de direito de acordo com os aspectos, sociais e culturais dos ofendidos. Utiliza com maestria de modo figurado três personagens, o militar, o comerciante e o camponês.

Enquanto para o militar o ataque a honra é uma efetiva ofensa ao seu direito, para o comerciante a falta de compromisso do devedor para cumprir com suas obrigações financeiras junto ao seu credor, tem o mesmo significado, por sua vez, para o camponês a invasão dos seus limites territoriais, mesmo que de maneira sutil e não causando muito prejuízo financeiro, é uma verdadeira ofensa ao seu direito.

Em síntese, o que é para o militar um direito inflexível, para o comerciante e para o camponês, não tem muito significado, por sua vez, o que é importante para o comerciante, já para o militar e o camponês, não tem muito valor; por fim, a defesa da propriedade para o camponês é uma clausula inflexível.

Assim, concluiu que seria completamente antagônico o julgamento de determinada situação de uma classe ou grupo social, por outra classe à qual, desconhece a realidade dos fatos e principalmente, não tem empatia para com o que está analisando e julgando.

Concluindo este pensamento preliminar, Ihering, passa a dissertar sobre a sentença proferida na peça de Shakespeare, onde o magistrado ao reconhecer o direito violado do ofendido, sentencia a seu favor, permitindo que corte uma libra de carne dos glúteos do seu ofensor, contudo, sob a condição de que, a medida deveria ser exata e não poderia cair, uma gota sequer de sangue. Percebemos que houve a tutela jurisdicional do Estado, entretanto de forma inatingível, pois uma sentença como essa, seria impossível de se cumprir.

Esta abordagem inicial é somente um ponto de ilustração, para se refletir sobre o, conteudo da sentença proferida.

Passemos agora a analisar o contexto em que ela se edificou:

 

Breve Histórico

Em meados dos anos 90, desenvolvendo as atividades laborais na divisão de ensino da guarda municipal de Curitiba, e sendo procurado diversas vezes por prefeitos, vereadores e gestores público, a fim de auxiliar na instalação e/ou readequação da guarda municipal em suas cidades. Iniciei os trabalhos de pesquisa sobre o tema Guarda Municipal e segurança pública municipal, visando juntamente poder fornecer um compendio especifico sobre o tema.


Essa pesquisa casual, se tornou uma prática habitual e técnica, ao qual, por conseguinte no ano de 2005 materializou-se, na forma de um livro intitulado: “O que você precisa saber sobre Guarda Municipal e nunca teve a quem perguntar”,[2] (ISBN 9788591219209).


Considerando que na área acadêmica a pesquisa nunca se esgota, pois, quanto mais pesquisamos, mais nos aprofundando e descobrimos que temos muito mais a aprender. No ano de 2010, foi publicada a 2ª edição do livro, com algumas atualizações importantes. Contudo, ao pesquisar mais sobre o histórico da criação das policias no Brasil, em especial, considerando agora a era digital, a qual oportunizou condições mais favoráveis, para desentranhar informações acobertadas pelas poeiras dos tempos, e pela dificuldade inicial do contato com textos físicos.

Ressalte-se que em especial, sobre o tema “Breve histórico da guarda municipal no Brasil”, inicialmente as pesquisas que deram origem a este capitulo, foram realizadas através da consulta de cópias de documentos de época, escritos a mão, na gráfica arcaica dos séculos XVIII e XIX, do acervo da Biblioteca do Museu Imperial, além da consulta da Coleção de Obras Raras, (quase inacessíveis antes da era digital) e dos Anais do Senado do Império.

Desta forma, no ano de 2011, ao encontrar a verdadeira perola que faltava para preencher o quebra cabeça, tão logo tendo concluído os trabalhos, laçamos a 3 edição do livro, bem como produzimos um texto denominado, “Guarda Municipal - Instituição bicentenária mantendo a segurança pública no Brasil”, disponível em alguns sites jurídicos, entre eles, o www.direitonet.como.br.

Quanto a pérola que me referi, foi justamente o marco inicial de toda a pesquisa e dissertação do histórico evolutivo das guardas municipais no Brasil. No início dos anos 90, ao consultar as obras raras no acervo da Biblioteca Pública do Paraná, consegui ter acesso a uma xerografia das legislações do império datadas de 18 de agosto de 1831, a primeira, mencionando sobre a nomeação dos Tutores do Imperador Dom Pedro II, e a seguinte, tratando sobre a criação da Guarda Nacional e extinção das Guardas Municipais, serviços de milícias e corpos de ordenanças. Esse material histórico foi o marco efetivo da pesquisa mais aprofundada, a qual, no ano de 2011, consegui concluir, chegando e primeira lei de criação das Guardas Municipais no Brasil, qual seja, 14 de junho de 1831.

 

Comparação

Ao fazermos uma rápida comparação entre a Decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) referente ao processo REsp 1977119, às folhas 08/10, e às folhas 22/33 do Livro “O que você precisa saber sobre Guarda Municipal e nunca teve a quem perguntar”, 3ª edição, 2011 de autoria do Inspetor Frederico (Claudio Frederico de Carvalho), ficaremos surpresos.

A descrição dos fatos, a repetição de palavras e conteúdo, a ordem cronológica, a citação de textos antigos, a falha na sincronia do texto, entre os lapsos temporais: de 1866 até 1946, de 1946 a 1969, e por fim, entre 1970 até 1988, em razão da supressão de tópicos importantes no texto original, demonstram claramente a falta de conhecimento científico sobre o assunto, bem como, a manipulação e transcrição parcial de artigo de autoria distinta.

Entre um misto de alegria por ter visto o reconhecimento do seu trabalho de pesquisa, e o sentimento de tristeza ao perceber a ausência dos créditos autorais e principalmente a supressão da conclusão final deste capitulo “ipsis litteris”, trazendo assim entendimento diverso e induzindo um órgão colegiado a julgar de maneira tendenciosa e falha.

Caso, o autor fosse procurado, certamente teria feito uma explanação aprofundada sobre o tema, ressaltando as atualizações descritas no livro - A evolução da segurança pública municipal no Brasil[3], 2ª edição, 2020, às folhas 52/53, conforme segue: 

“A recriação da concepção de polícia cidadã foi um marco da história brasileira ocorrido em 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988a). Estabeleceu-se assim uma nova era no direito brasileiro, por meio da implantação do regime democrático de direito, o qual excluiu por completo os resquícios do sistema ditatorial existente anteriormente.

A nova Constituição elevou os municípios à condição de entes federados, equiparando-os aos estados e ao Distrito Federal, reconhecendo sua importância para a nação. No aspecto da segurança pública, a Constituição outorgou que os municípios instalassem e mantivessem suas guardas municipais.

As leis federais que sucederam a Constituição de 1988 vieram por convalidar o texto constitucional, reconhecendo efetivamente os municípios como protagonistas da segurança pública das cidades, conforme a Lei n. 10.201, de 14 de fevereiro de 2001 (Brasil, 2001a), e a Lei n. 13.675, de 11 de junho de 2018 (Brasil, 2018a) e as demais legislações que vamos estudar nos próximos capítulos.”

 


Analisando os recortes do despacho fica nítido a superficialidade do conhecimento do relator sobre o tema, ao qual discorre sobre as: “Origens históricas das guardas municipais”, o que é totalmente compreensível, uma vez que somente um pesquisador ou o próprio autor conhecedor do material ao qual extensamente debruçou-se em pesquisa, análise e escrita teria. Tratando assim, de maneira superficial, excluindo pontos fundamentais, e consequentemente, causando um entendimento diverso do originário.

 

Quadro comparativo entre a Decisão exarada no REsp 1.977.119, e o livro: O que você precisa saber sobre Guarda Municipal e nunca teve a quem perguntar – 3ª e 4ª edição (2011/2013), Claudio Frederico de Carvalho.

 

REsp 1.977.119

Livro de 2011

As origens mais remotas das guardas municipais, no Brasil, apontam para a figura dos “quadrilheiros”, responsáveis pelo patrulhamento urbano ainda no período colonial, consoante o disposto no Livro I, título LXXIII, das Ordenações Filipinas.

 

As Ordenações Filipinas deram os primeiros passos para a criação e desenvolvimento de Polícias Urbanas no Brasil, ao disporem sobre os serviços gratuitos de polícia. Esses serviços eram exercidos pelos moradores, sendo organizados por quadros ou quarteirões e controlados primeiramente pelos alcaides e mais tarde, pelos juízes da terra.

No Livro I, das Ordenações Filipinas, em seu título LXXIII, tratava-se da figura dos Quadrilheiros que estavam presentes em vilas, cidades e lugares para prender os malfeitores. Esses “policiais” eram moradores dessas cidades, dentre os quais 20 eram eleitos por Juízes e Vereadores das Câmaras Municipais, sendo ordenado, neste ato, um como Oficial Inferior de Justiça, a fim de representar os demais integrantes, servindo todos gratuitamente durante três anos como Quadrilheiros. A segurança pública na época era executada pelos chamados "quadrilheiros", grupo formado pelo reino português para patrulhar as cidades e vilas daquele país, e que foi estendido ao Brasil colonial. Eles eram responsáveis pelo policiamento das 75 ruas e alamedas da cidade. Com a chegada dessa "nova população", os quadrilheiros não eram mais suficientes para fazer a proteção da Corte, então com cerca de 60.000 pessoas, sendo mais da metade escravos.

 

 

Oficialmente, no entanto, o primeiro registro que se tem da criação da corporação com essa nomenclatura específica é o Decreto de 14 de junho de 1831 (Período Regencial), cujo art. 13 atribuía expressamente aos agentes municipais a função de repressão criminal:

Art. 13. Cada um dos guardas municipaes prestará perante o Commandante de sua esquadra, este perante o Commandante do corpo, e este perante o Juiz de Paz do seu districto, o seguinte juramento:

Juro sustentar a Constituição, e as Leis, e ser obediente ás autoridades constituídas, cumprindo as ordens legaes que me forem communicadas para segurança publica e particular, fazendo os esforços, que me forem possíveis, para separar tumultos, terminar rixas, e prender criminosos em flagrante; participando, como me incumbe, imediatamente que chegarem ao meu conhecimento, todos os factos criminososo, ou projectos de perpetração de crime.

 

Foi então que a Regência Provisória, a 14 de junho de 1831 mediante Decreto Imperial criou o "Corpo de Guardas Municipais" na Corte, sendo que autorizou que fosse feito o mesmo nas demais províncias.

Assim, foi organizado em cada Distrito de Paz um Corpo de Guardas Municipais, estando os mesmos divididos em esquadras.

“Art. 13. Cada um dos guardas municipaes prestará perante o Commandante de sua esquadra, este perante o Commandante do corpo, e este perante o Juiz de Paz do seu districto, o seguinte juramento:

Juro sustentar a Constituição, e as Leis, e ser obediente ás autoridades constituídas, cumprindo as ordens legaes que me forem communicadas para segurança publica e particular, fazendo os esforços, que me forem possíveis, para separar tumultos, terminar rixas, e prender criminosos em flagrante; participando, como me incumbe, immediatamente que chegarem ao meu conhecimento, todos os factos criminososo, ou projectos de perpetração de crime.”

 

Em 18 de agosto de 1831, com a criação da Guarda Nacional, extinguiram-se as guardas municipais, posteriormente recriadas pela Lei de 10 de outubro do mesmo ano, data em que até hoje se comemora o Dia Nacional dos Guardas Municipais, instituído pela Lei n. 12.066/2009. Segundo os arts. 1º e 2º daquele diploma normativo, competia ao órgão manter a tranquilidade pública e auxiliar a Justiça. Vejam-se:

 

Neste mesmo momento histórico, em 18 de agosto de 1831, com a assunção da Regência Permanente, logo após a edição da lei que tratava da tutela do Imperador e de suas Augustas irmãs, foi editada a lei que instituiu a Guarda Nacional, sendo extintas no mesmo ato as Guardas Municipais, Corpos de Milícias e Serviços de Ordenanças.

Conseqüentemente, a fim de manter a ordem pública nos municípios, em 10 de outubro de 1831 – marco de comemoração do Dia Nacional das Guardas Municipais (Lei n.º 12.066/2009) – foram novamente reorganizados os Corpos de Guardas Municipais Voluntários no Rio de Janeiro e nas demais Províncias, sendo este um dos atos mais valorosos realizados pelo então, Regente Feijó, o qual tornou pública tamanha satisfação, ao dirigir-se ao Senado em 1839, afirmando que:

 

Já no âmbito da Província de São Paulo, em 15 de dezembro de 1831, o Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar – na condição de presidente da provínciacriou a Guarda Municipal Permanente, embrião da futura Polícia Militar do Estado de São Paulo, de quem ele é patrono, tanto que dá nome ao batalhão de elite da corporação, a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar).

 

Em São Paulo, a 15 de dezembro de 1831, por lei da Assembléia Provincial, proposta pelo Presidente da Província, Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, foi criado o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, composto de cem praças a pé, e trinta praças a cavalo; eram os "cento e trinta de trinta e um".

 

Percebe-se, dessa forma, que, originalmente, as guardas municipais eram nitidamente direcionadas ao serviço de manutenção da ordem pública e combate à criminalidade. Com o advento da Constituição de 1946, todavia, foram criadas as polícias militares estaduais, as quais, nos termos da regulamentação trazida pelo Decreto-lei federal 667 de 1969, passaram a exercer com exclusividade o policiamento ostensivo. A propósito:

Art. 3º Instituídas para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às Polícias Militares, no âmbito de suas respectivas jurisdições:

a) executar com exclusividade, ressalvas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos;

[...]

Pouco tempo depois, com a junção de membros da antiga Força Pública e da Guarda Civil de São Paulo, foi criada a Polícia Militar do Estado de São Paulo, por meio do Decreto-lei n. 217, de 8 de abril de 1970.

Artigo 1.º - Fica constituída a Polícia Militar do Estado de São Paulo, integrada por elementos da Fôrça Pública do Estado e da Guarda Civil de São Paulo, na forma deste Decreto-lei, observadas as disposições do Decreto-lei federal n.º 667, de 2 de julho de 1969 e Decreto-lei federal n.º 1072, de 30 de dezembro de 1969.

[...]

Artigo 3.º - Os atuais componentes da Guarda Civil de São Paulo ficam aproveitadas e integrados na Polícia Militar de São Paulo na forma e condições estabelecidas nêste decreto-lei.

 

Com a promulgação da Constituição da República de 18 de setembro de 1946, surgiram as “polícias militares, instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados”, sendo consideradas como forças auxiliares e reservas do Exército.

Desse modo, com a publicação do Decreto-Lei n.º 544, de 17 de dezembro de 1946, a Força Policial do Estado do Paraná passou a denominar-se Polícia Militar do Estado do Paraná.

....

Desencadeado pelo Golpe Militar, por meio dos Decretos–Lei Federais 667, de 2 julho de 1969 e 1070, de 30 de dezembro de 1969, os municípios tornaram-se impossibilitados de exercer a segurança pública. Contudo, mesmo com todas essas mudanças políticas, alguns mantiveram as suas Guardas Municipais, umas restritas à banda municipal, outras à vigilância interna dos próprios.

Entretanto em algumas cidades apenas mudaram o nome das suas instituições para Guarda Civil Metropolitana, mantendo-as até os dias de hoje.

Através do Decreto-Lei 667 e suas modificações, garantiu-se às Polícias Militares, a Missão Constitucional de Manutenção da Ordem Pública, dando-lhes exclusividade do planejamento e execução do policiamento ostensivo, com substancial reformulação do conceito de "autoridade policial", assistindo-se, também, a extinção de "polícias" fardadas, tais como: Guarda Civil, Corpo de Fiscais do DET, Guardas Rodoviários do DER e Guardas Noturnos.

A partir de 1968, a Policia Militar passou a executar, com exclusividade, as atribuições de policiamento ostensivo.

Em 1969, a Guarda Civil pertencendo ao Governo do Estado do Paraná desde o ano de 1937, passou então a estar diretamente subordinada à Polícia Militar do Estado, sendo esta corporação efetivamente extinta em 17 de julho de 1970.

 

 

Conclusão Contrária ao texto originário

REsp 1.977.119

Livro de 2011

Nesse contexto, muitas guardas municipais foram extintas ou passaram a se limitar à proteção do patrimônio municipal, agora sob a alcunha de Guarda Civil Metropolitana, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, “apenas um corpo de vigilantes adestrados e armados para a proteção do patrimônio público e maior segurança dos Municípios, sem qualquer incumbência de manutenção da ordem pública (atribuição da polícia militar) ou de polícia Judiciária (atribuição da polícia civil)” (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Municipal Brasileiro, 4.ed, São Paulo: RT, 1981, p. 375, grifei).

Dessa forma, o caminho cronológico percorrido acima demonstra que, conquanto por ocasião de seu surgimento, em 1831, as guardas municipais hajam exercido importante papel na segurança pública e atuado para a preservação da ordem contra a criminalidade como verdadeiro órgão policialo que, para alguns, poderia servir como argumento histórico para justificar a atuação ostensiva de tais agentes na repressão criminal ainda nos dias de hoje –, essa função foi gradativamente assumida pela Força Pública e, posteriormente, pelas polícias militares, instituídas pela Constituição de 1946 e organizadas pelo Decreto-lei federal 667 de 1969.

Nesse período, a atividade de patrulhamento ostensivo e preservação da ordem pública passou a ser de atribuição exclusiva dos estados, o que se consolidou com o atual regramento contido na Constituição de 1988, por opção clara e consciente do constituinte, a indicar uma mudança deliberada no modelo estatal de segurança pública, consoante passo a demonstrar.

IV. As guardas municipais após a Constituição de 1988

Nos termos do art. 144, caput, e incisos, da Constituição Federal,

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares

No § 8º do art. 144 fica estabelecida a possibilidade de criação das guardas municipais, com os limites de sua atuação: “Os Municípios poderão constituir guardas municipais, destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.

 

Com a queda do Regime Militar e a segurança municipal deficitária, começou a se cogitar a possibilidade de reorganizar as Guardas Municipais nas grandes cidades e regiões metropolitanas.

Neste mesmo período, Curitiba enfrentava um aumento repentino de criminalidade, bem como depredações em seus “próprios“ municipais, despertando a necessidade de se criar um grupo diferenciado, onde proteção à população seria a sua prioridade, pois “o povo em coro clama pela volta da Guarda Civil”.

Com este intuito, em 17 de julho de 1986, exatamente 16 anos após a sua extinção, o Prefeito Municipal Roberto Requião sancionou, com aprovação da Câmara Municipal dos Vereadores de Curitiba, conforme as prerrogativas inerentes ao seu cargo, o Projeto de Lei n.º 56/84, de autoria do Vereador José Maria Correia, surgindo assim a Lei n.º 6867, que criou o Serviço Municipal de Vigilância - VIGISERV.

A autonomia municipal se consolidou através da Carta Magna de 1988, que conferiu aos municípios a faculdade de “criar novamente” as Guardas Municipais, seguindo o estatuído em seu Artigo 144, § 8º.

Desse modo, aplicando o preceito legal da Constituição da República Federativa do Brasil, a VIGISERV teve a sua denominação alterada por meio da Lei n.º 7356/89, passando a ser denominada Guarda Municipal de Curitiba, com o lema: “PRO LEGE SEMPER VIGILANS” (Pela Lei, Sempre Vigilantes) – lema este, oriundo da extinta Guarda Civil do Paraná.

Em 1988, os Constituintes da República, estabeleceram um Sistema de Segurança Pública, constituído por órgãos policiais, de acordo com o Art 144 da Constituição da República, com estruturas próprias e independentes, porém, embora com atribuições distintas, interligados funcionalmente, corporificando o esforço do Poder Público para garantir os direitos do cidadão e da coletividade, prevenindo e combatendo a violência e a criminalidade.

 

 

No ano de 2017, ao ser convidado pela editora Intersaberes, para escrever na forma dialógica sobre segurança pública municipal, visando não incorrer no “erro” de autoplagio, na obra intitulada - A evolução da segurança pública municipal no Brasil,[4] passei a discorrer sobre o mesmo assunto da seguinte forma:

A criação da polícia no Brasil

No século XVI, as Ordenações Filipinas – sistema jurídico que vigorava em Portugal e, consequentemente, no Brasil (tanto no período colonial quanto em parte do imperial) – deram início à criação e ao desenvolvimento das Polícias Urbanas no Brasil. Até então, os serviços gratuitos de polícia eram exercidos pelos próprios moradores, organizados por quadras ou quarteirões e controlados inicialmente pelos alcaides – antigos funcionários incumbidos de cumprir as determinações judiciais, com função semelhante à do oficial de justiça – e, mais tarde, pelos juízes da terra – magistrados escolhidos localmente nas freguesias e que desempenhavam funções jurisdicionais e administrativas.

Na época, havia o Corpo de Quadrilheiros, instituído oficialmente no reino português em 1383, sendo sua atuação reformulada em 15 de março de 1521, passando assim, a ser obrigatória sua existência em todas as cidades, vilas e lugares, para prender os malfeitores, daquele país. Esse grupo foi estendido ao Brasil colonial e era responsável pelo policiamento da cidade do Rio de Janeiro e demais vilarejos. Com a chegada da “nova população” composta por colonizadores que passaram a se instalar no país em busca de riquezas, considerou-se que os quadrilheiros não seriam mais suficientes para proteger a Corte, que era composta de 60 mil pessoas, mais da metade escravos.

Assim, os quadrilheiros foram progressivamente substituídos por pedestres, corpos de milícias, serviços de ordenanças, companhias de dragões, regimento de cavalaria, guarda real de polícia e guardas municipais. Na legislação brasileira, a partir de 31 de março de 1742, os quadrilheiros nunca mais foram citados

...

Em 14 de junho de 1831, momento em que o Brasil Império passava por um período muito conturbado durante o governo da Regência Trina Provisória, a fim de manter a segurança da Corte e das demais províncias, foi criado o Corpo de Guardas Municipais, dividido em esquadras, em cada Distrito de Paz, divisões administrativas e judiciárias dos municípios.

A título ilustrativo, apresentamos a seguir juramento a que deveria se submeter todo cidadão que passasse a integrar esse corpo de profissionais, conforme Decreto de 14 de junho de 1831:...

Art. 13.

[…]

Juro sustentar a Constituição, e as leis, e ser obediente ás autoridades constituidas, cumprindo as ordens legaes que me forem communicadas para segurança publica e particular, fazendo os esforços, que me forem possiveis, para separar tumultos, terminar rixas, e prender criminosos em flagrante; participando, como me incumbe, immediatamente que chegarem ao meu conhecimento, todos os factos criminososo, ou projectos de perpetração de crime. (Brasil, 1831b)


Com a mudança da Regência Trina Provisória para a Regência Trina Permanente, no dia 18 de agosto de 1831, foi instituída a Guarda Nacional e extintas as guardas municipais, os corpos de milícias e os serviços de ordenanças.

...

Após perceber a carência dos municípios em relação à segurança local, em 10 de outubro de 1831, mediante Lei Imperial, foram novamente reorganizados os corpos de guardas municipais voluntários no Rio de Janeiro e nas demais províncias. Em 22 de outubro, entrou em vigor o 1º Regulamento das Guardas Municipais.

...

Seguindo os passos do governo imperial, na província de São Paulo, no dia 15 de dezembro de 1831, por Lei da Assembleia Provincial proposta pelo Presidente da Província, Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, foi criado o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, composto por cem praças a pé e por trinta praças a cavalo – eram os cento e trinta de trinta e um.

...

Com a Constituição dos Estados Unidos do Brasil (Brasil, 1946), as polícias dos estados, dos territórios e do Distrito Federal passaram a ser oficialmente denominadas polícias militares, instituídas, conforme prevê o artigo 183 do texto constitucional, “para a segurança interna e a manutenção da ordem nos estados e consideradas forças auxiliares, reservas do exército”.

Seguindo essa previsão constitucional, o Estado do Paraná, por exemplo, publicou o Decreto-Lei n.  544, de 17 de dezembro de 1946, alterando a denominação da Força Policial Estadual para Polícia Militar do Estado do Paraná.

...

Com o início do regime militar, entrou em vigor o Decreto-Lei n. 667, de 2 de julho de 1669 (Brasil, 1969c), que reorganizou as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos estados, dos territórios e do Distrito Federal.

A referida legislação regulamentou como função exclusiva das polícias militares a atividade de policiamento ostensivo, fardado, a fim de assegurar o cumprimento da lei e a manutenção da ordem pública, limitando, assim, a atuação dos municípios, o que consequentemente resultou na extinção das demais polícias fardadas, tais como as guardas municipais, as guardas civis, o corpo de fiscais do Departamento de Engenharia de Transportes (DET), os guardas rodoviários do Departamento de Estradas de Rodagem (DER) e os vigilantes municipais.

Assim, no Estado do Paraná, a Guarda Civil Metropolitana, órgão vinculado à Polícia Civil desde a sua criação no ano de 1911, passou a ficar diretamente subordinada à Polícia Militar e foi efetivamente extinta em 17 de julho de 1970.

A recriação da concepção de polícia cidadã foi um marco da história brasileira ocorrido em 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988a). Estabeleceu-se assim uma nova era no direito brasileiro, por meio da implantação do regime democrático de direito, o qual excluiu por completo os resquícios do sistema ditatorial existente anteriormente.

A nova Constituição elevou os municípios à condição de entes federados, equiparando-os aos estados e ao Distrito Federal, reconhecendo sua importância para a nação. No aspecto da segurança pública, a Constituição outorgou que os municípios instalassem e mantivessem suas guardas municipais.

As leis federais que sucederam a Constituição de 1988 vieram por convalidar o texto constitucional, reconhecendo efetivamente os municípios como protagonistas da segurança pública das cidades, conforme a Lei n. 10.201, de 14 de fevereiro de 2001 (Brasil, 2001a), e a Lei n. 13.675, de 11 de junho de 2018 (Brasil, 2018a) e demais legislações que vamos estudar nos próximos capítulos.”

 


Como podemos observar, sem realizar a cópia literal do texto anteriormente publicada no livro “o que você precisar saber sobre guarda municipal e nunca teve a quem perguntar”, conseguimos tratar com propriedade sobre o assunto, acrescentando inclusive novas informações, as quais tornaram a obra mais completa e didática, em uma linguagem acessível.

Nas palavras do saudoso poeta Carlos Drummond de Andrade (Canção Amiga) “Aprendi novas palavras, e tornei outras mais belas. E tornei outras mais belas. ”

 

Saiba mais:

- CARVALHO, Claudio Frederico de. O que você precisa saber sobre Guarda Municipal e nunca teve a quem perguntar. 3. ed Curitiba: C. Carvalho, 2011. xx, 263p., il., 21 cm. Bibliografia: p. 262-263. ISBN 9788591219209 (broch.).

Localização: Obras Gerais - V-382,4,2

 

Guarda Municipal - Instituição bicentenária mantendo a segurança pública no Brasil

https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/6331/Guarda-Municipal-Instituicao-bicentenaria-mantendo-a-seguranca-publica-no-Brasil

Leia o voto do relator no REsp 1.977.119.

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/RESp1977119%2018082022.pdf

 

 



[1] IHERING, Rudolf  Von. A luta pelo Direito. São Paulo: Editora Acadêmica, 1993

 

[2] Carvalho, Claudio Frederico de Carvalho. O que você precisa saber sobre a guarda municipal e nunca teve a quem perguntar. ed. São Paulo: Editora Santarem,. 2013

[3] Carvalho, Claudio Frederico de Carvalho. A evolução da segurança pública municipal no Brasil. 2. ed. rer. atual. Curitiba: Intersaberes,.2020.

[4] Carvalho, Claudio Frederico de Carvalho. A evolução da segurança pública municipal no Brasil. 2. ed. rer. atual. Curitiba: Intersaberes,.2020.

 

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